Todos os dias acordo com uma certeza maior, a minha felicidade vem, em grande parte, da felicidade dos outros. Nos últimos anos cresceu em mim algo mais do que vontade, um desejo de ajudar quem mais precisa. Não se descreve um sorriso, não se escreve um olhar de alguém que se acabou de ajudar, é talvez o sentimento mais genuíno que se pode sentir, é amor. O meu coração cresceu (envelheu?) nos últimos tempos e, se antes a minha felicidade passava apenas pela satisfação das minhas necessidades, hoje vai muito além disso. Não sei dizer o que se passou em mim, o que me aconteceu, a verdade é que se durante algum tempo andei sem saber bem qual era a minha vocação, hoje sei que ela passar por ajudar os outros…soa a cliché, mas não é!
"Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer."
E se o corpo, esse viaduto da alma, não existisse? Se fossemos só alma, uma camada de pó reluzente de várias cores, será que as relações humanas seriam as mesmas? Até que ponto o corpo assume um papel importante em tudo aquilo que fazemos? Tenho a certeza que seria tudo muito diferente, porque se é verdade que o corpo/aparencia facilita as coisas para alguns também prejudica para outros. Por exemplo, possivelmente, muitas das pessoas que se sentem bem consigo mesmas apenas por serem bonitos ou elegantes, deixariam de o ser e o contrário também seria verdade, ou seja, pessoas menos atraentes fisicamente, mas fieis a si próprias e aos seus valores, ir-se-iam sentir maravilhosamente na sua não-pele. Não quero com isto desvalorizar a aparência, ela é importante e em (pen)última análise, também reflecte bastante do que somos: a postura, a forma como nos movimentamos e relacionamos com o espaço (e disso entendo eu!) mas, apesar de tudo isso, não pode(deve) ser o mais importante pois convinhamos, é muito mais fácil ser-se bonito a ser-se leal aos nossos valores, dá mais trabalho, horas de sono perdidas e se calhar uma outra ruga no rosto. E quando penso e escrevo sobre isto, faço-o para mim, para me relembrar porque muitas vezes também eu me esqueço, também eu me deixo corromper e enganar pelas aparências que frequentemente pouco ou nada têm a ver o sumo, a massa de que as pessoas são feitas.
"E um só momento nos sentimos deuses
Imortais pela calma que vestimos
E a altiva indiferença
Às coisas passageiras "
"Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes.
Assim como em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive.”
É este sentimento que busco, a satisfação de viver cada dia intensamente mas sem tirar os pés do chão...e o desafio é este mesmo, a procura do "meio termo", da virtude e da loucura saudável que nos diferencia e impulsiona...pois o doce, não seria tão doce sem o amargo, e talvez por isso, saiba tão bem de vez em quando, por breves instantes, fechar o olhos e sentir-me levitar um bocadinho , pairar sobre as coisas más (como dizia a fada oriana da Sophia de Mello Breyner).
"Como Esquecer
Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?
As pessoas têm de morrer, os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar. Sim, mas como se faz? Como se esquece?
Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processo e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se pode despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas!
É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de termina de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso, primeiro, aceitar.
É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si, isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução.
Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha.
Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos distraímos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado
O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento conseguido com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar..
Porque é que é sempre nos momentos em que estamos mais cansados ou mais felizes que sentimos mais a falta das pessoas de quem amamos? O cansaço faz-nos precisar delas. Quando estamos assim, mais ninguém consegue tomar conta de nós. O cansaço é uma coisa que só o amor compreende. A minha mãe. O meu amor. E a felicidade. A felicidade faz-nos sentir pena e culpa de não a podermos participar. É por estarmos de uma forma ou de outra sozinhos que a saudade é maior.
Mas o mais difícil de aceitar é que há lembranças e amores que necessitam do afastamento para poderem continuar. Afonso Lopes Vieira dizia que Portugal estava tão mal que era preciso exilar-se para poder continuar a amar a Pátria dele. Deixar de vê-la para ter vontade de a ver. Às vezes, a presença do objecto amado provoca a interrupção do amor. É a complicação, o curto-circuito, o entaralamento, a contradição que está ali presente, ali, na cara do coração, impedindo-o de continuar.
As pessoas nunca deveriam morrer, nem deixarem de se amar, nem separar-se, nem esquecer-se, mas morrem e deixam e separam-se e esquecem-se. Custa aceitar que os mais velhos, que nos deram vida, tenham de dar a vida para poderem continuar vivos dentro de nós. Mas é preciso aceitar. É preciso aceitar. É preciso sofrer, dar urros, dar murros na mesa, não perceber. E aceitar. Se as pessoas amadas fossem imortais perderíamos o coração. Perderíamos a religiosidade, a paciência, a humanidade até.
Há uma presença interior, uma continuação em nós de quem desapareceu, que se ressente do confronto com a presença exterior. É por isso que nunca se deve voltar a um sitio onde se tenha sido feliz. Todas as cidades se tornam realmente feias, fisicamente piores, à medida que se enraízam e alindam na memória que guardamos delas no coração. Regressar é fazer mal ao que se guardou.
Uma saudade cuida-se. Nos casos mais tristes separa-se da pessoa que a causou. Continuar com ela, ou apenas vê-la pode desfazer e destruir a beleza do sentimento, as pessoas que se amam mas não se dão bem só conseguem amar-se bem quando não se dão.
Mas como esquecer? Como deixar acabar aquela dor? É preciso paciência. É preciso sofrer. É preciso aguentar.
Há grandeza no sofrimento. Sofrer é respeitar o tamanho que teve um amor.No meio do remoinho de erros que nos revolve as entranhas de raiva, do ressentimento, do rancor - temos de encontrar a raiz daquela paixão, a razão original daquele amor.
As pessoas morrem, magoam-se, separam-se, abandonam-se, fazem o maior dos disparates com a maior das facilidades. Para esquecê-las é preciso chocá-las primeiro. Esta é uma verdade tão antiga que espanta reparar em como ainda temos esperanças de contorná-la. Nos uivos das mulheres nas praias da Nazaré não há «histerias» nem «ignorância» nem «fingimentos». Há a verdade que nós, os modernos, os tranquilizados, os cools, os cobardes, os armados em livres e independentes, os tanto-me-fazes, os anestesiados, temos medo de enfrentar.
Para esquecer uma pessoa não há vias rápidas, não há suplentes, não há calmantes, ilhas nas Caraíbas, livros de poesia - só há lembrança, dor e lentidão, com uns breves intervalos pelo meio para retomar o fôlego.
Esta dor tem de ser aguentada e bem sofrida com paciencia e fortaleza. Ir a correr para debaixo das saias de quem for é uma reacção natural, mas não serve de nada e faz pouco de nós próprios. A mágoa é um estado natural. Tem o seu tempo e o seu estilo. Tem até uma estranha beleza. Nós somos feitos para aguentar com ela.
Podemos arranjar as maneiras que quisermos de odiar quem amámos, de nos vingarmos delas, de nos pormos a milhas, de lhe pormos os cornos, de lhes compormos redondilhas, mas tudo isso não tem mal. Nem faz bem nenhum. Tudo isso conta como lembrança. Tudo isso conta como uma saudade contrariada, enraivecida, embaraçada por ter sido apanhada na via pública, como um bicho preto e feio, um parasita do coração, uma peste inexterminável, barata esperneante: uma saudade de pernas para o ar.
O que é preciso é iguala a intensidade do amor a quem se ama e a quem se perdeu. Para esquecer, é preciso dar algo em troca. Os grandes esquecimentos saem sempre caros. É preciso dar tempo, dar dor, dar com a cabeça nas paredes, dar sangue, dar um pedacinho de carne (eu quero do lombo, mesmo por cima da tua anca de menina, se faz favor).
E mesmo assim, mesmo magoando, mesmo sofrendo, mesmo conseguindo guardar na alma o que os braços já não conseguem agarrar, mesmo esperando, mesmo aguentando como um homem, mesmo passando os dias vestida de preto, aos soluções, dobrada sobre a areia da Nazaré, mesmo com muita paciência e muita má vontade, mesmo assim é possível que não se consiga esquecer nem um bocadinho.
Quanto mais fácil amar e lembrar alguém - uma mãe, um filho, um grande amor - mais fácil deixar de amá-lo e esquecê-lo. Raio de sorte, ó lindeza, miséria suprema do amor. Pode esquecer-se quem nos vem à lembrança, aqueles de quem nos lembramos de vez em quando, com dor ou alegria, tanto faz, com o tempo e com paciência, aqueles que amamos com paciência, aqueles que amamos sinceramente, que partiram, que nos deixaram, vazios de mãos e cheios de saudades, esses doem-se e depois esquecem-se mais ou menos bem.
E quando alguém está sempre presente? Quando é tarde. Quando já não se aguenta mais. Quando já é tarde para voltarmos atrás, percebe-se que há esquecimentos tão caros que nunca se podem pagar. Como é que se pode esquecer o que só se consegue lembrar? Aí, está o maior sofrimento de todos. O luto verdadeiro. Aí está a maior das felicidades.
Miguel Esteves Cardoso em Último Volume
One day in the park
I had quite a surprise.
I met a girl
who had many eyes.
She was really quite pretty
(and also quite shocking!)
and I noticed she had a mouth,
so we ended up talking.
We talked about flowers,
and her poetry classes,
and the problems she'd have
if she ever wore glasses.
It's great to now a girl
who has so many eyes,
but you really get wet
when she breaks down and cries.